As manchas que nos olham de volta: o que o Rorschach ainda diz sobre nós - e porque Tremembé reacendeu esse debate
Bons Fluidos

Há mais de um século, um psiquiatra suíço chamado Hermann Rorschach colocou sobre a mesa dez pranchas com manchas de tinta e fez a pergunta mais simples e mais incômoda que alguém pode lançar a outra pessoa: “o que você vê aqui?” A resposta nunca foi apenas um “morcego” ou “borboleta”. A resposta sempre foi uma tentativa de organizar o caos.
Quando uma série, um filme ou um crime famoso volta a colocar o Rorschach na conversa pública, não é só curiosidade clínica que desperta. É o desejo humano de entender o invisível: como a nossa mente filtra a realidade, distorce dores, sustenta máscaras, tenta dar sentido ao absurdo. Foi exatamente isso que aconteceu com a série Tremembé, que reviveu casos como Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga, os irmãos Cravinhos e o casal Nardoni, e trouxe de volta a pergunta que atormenta o público: o que se passa na cabeça de alguém que cruza limites impensáveis.
O teste de Rorschach nasceu em 1921 e atravessou diferentes épocas e usos. Em seu início, interessava sobretudo às desordens do pensamento, como aquelas observadas em quadros psicóticos. Com o tempo, ganhou status de técnica projetiva para investigar personalidade, afetos, modos de perceber e narrar o mundo. O procedimento é aparentemente desarmado. Algumas pranchas coloridas, outras em preto e branco. Nenhuma resposta certa. Um convite para olhar e dizer. A ambiguidade é o próprio instrumento, porque diante do que não tem solução objetiva projetamos conteúdos internos. A projeção, conceito que a psicanálise descreveu, é essa arte de ver fora o que se movimenta por dentro. Quando Tremembé dramatiza interrogatórios, laudos e cenas de julgamento, o espectador busca ferramentas que prometam atravessar a máscara. O Rorschach entra nesse imaginário como símbolo de profundidade e mistério, o espelho que revelaria aquilo que a pessoa não admite nem para si.
A força do método sempre esteve em ir além do que é dito de maneira direta. Não se avalia apenas o conteúdo da resposta, mas como a mente se organiza para produzi-la. O detalhe que chama atenção, o tempo que se leva para falar, a capacidade de integrar partes, o uso de cor e movimento, a coerência da pequena história contada diante de um borrão. Quem aplica precisa de formação extensa para padronizar a aplicação, codificar, interpretar e, sobretudo, sustentar uma ética. Não se trata de adivinhar segredos, e sim de construir hipóteses que ajudem alguém a se encontrar. Em narrativas como as de Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga, Alexandre Nardoni e os irmãos Cravinhos, a tentação é buscar uma “assinatura psicológica” única que explicaria tudo. A vida real é menos cinematográfica. Um teste nunca encerra a questão. No máximo, compõe um mosaico que inclui história de vida, contexto, psiquiatria, psicologia forense e muitos outros dados.
Como todo instrumento psicológico que se propõe a orientar decisões importantes, o Rorschach foi e deve continuar sendo cobrado por validade e confiabilidade. Ao longo das décadas, surgiram sistemas de codificação que organizaram regras, reduziram vieses e deram mais robustez às interpretações. Ainda assim, a ciência prossegue fazendo perguntas necessárias. Em algumas populações, certos achados apareceram com frequência maior do que seria esperado, o que acendeu alertas sobre falsos positivos. Em outros contextos, avaliadores diferentes chegaram a conclusões distintas, lembrando que todo olhar humano carrega lentes. A boa notícia é que a crítica qualificada não invalida o método. Ela o afina. Ela nos obriga a usá-lo como o que ele é: parte de uma avaliação mais ampla, nunca um oráculo. Essa prudência é vital quando o debate envolve crimes reais que chocaram o Brasil e que a série Tremembé reencena com precisão dramática. Entre a curiosidade legítima e o espetáculo, cabe à ciência sustentar o rigor.
O fascínio público pelo Rorschach cresce quando entra em cena a figura da mente criminosa. Obras de true crime se interessam por qualquer ferramenta que prometa iluminar o abismo entre uma biografia comum e um ato de violência extrema. É legítimo procurar explicações, mas é perigoso procurar atalhos. O Rorschach não é um detector de psicopatia. Não separa bons e maus. O que ele pode revelar, quando bem conduzido, são formas de pensar mais rígidas ou mais caóticas, modos de contato afetivo mais frios ou mais reativos, dificuldades de integrar emoção e razão, mecanismos de defesa que empobrecem a experiência ou que a distorcem até o delírio. Isso vale para um réu, para alguém que sofre em silêncio e para todos nós que nos perdemos, às vezes, nas próprias narrativas. Nos casos que Tremembé popularizou, a pergunta certa não é se “um teste” explicaria a violência. A pergunta honesta é como compreender o enredo psíquico e social que antecede o ato. O Rorschach pode oferecer pistas desse enredo, nunca a sentença.
Há algo profundamente humano nesse encontro com as manchas. Diante de um estímulo que escapa à lógica, cada pessoa constrói uma pequena ordem possível. Alguns veem asas porque precisam de leveza. Outros veem dentes porque aprenderam a esperar ataques. Outros demoram em silêncio porque têm medo de errar mesmo quando não existe resposta certa. O Rorschach é um espelho do estilo com que a mente tenta permanecer de pé. E isso tem valor clínico. Ajuda a compreender por que alguém repete relações que o ferem, por que interrompe projetos perto do fim, por que vive exausto tentando controlar tudo. Ajuda a ouvir o que a própria pessoa não sabe dizer com palavras diretas. Quando espectadores digitam no Google “Tremembé Rorschach”, “teste de Rorschach Suzane von Richthofen”, “Elize Matsunaga psicologia forense” ou “como funciona o teste das manchas”, o que buscam, no fundo, é um caminho para interpretar o indizível.
É por isso que, apesar das controvérsias, ele continua vivo na prática de muitos profissionais. Não como peça isolada que decide caminhos, mas como parte de um mosaico que inclui entrevista clínica, história de vida, observação de comportamento e outros instrumentos complementares. Feito com técnica, o Rorschach ilumina áreas de sombra que nenhuma escala objetiva alcança. Feito sem preparo, vira caricatura perigosa. A responsabilidade reside justamente aí. Reconhecer a potência e os limites. Acolher o que emerge. Devolver ao paciente uma leitura que o amplie e não o aprisione. Em tempos em que séries como Tremembé elevam a conversa sobre psiquiatria forense, criminologia, psicopatia e avaliação psicológica, é essencial reafirmar que ciência e ética caminham juntas.
Talvez o que mais nos atraia, quando pensamos no Rorschach, seja a chance de olhar para dentro por uma fresta menos ameaçadora. Não é fácil admitir que temos zonas cegas. Não é simples aceitar que mentimos para nós mesmos com boa fé. As manchas nos permitem brincar de ver figuras e, de repente, nos surpreendemos com a qualidade daquilo que emerge. Em consultório, não são raras as devolutivas em que o paciente diz algo como parece que você descreveu uma parte de mim que eu sempre senti, mas nunca consegui colocar em frases. Não há mágica aí. Há método, escuta, estudo e uma delicadeza que sustenta a coragem de um encontro.
Quando a cultura pop convoca o Rorschach para cenas de tribunal, manchetes ou interrogatórios, um risco se impõe. O risco de transformar a complexidade em espetáculo. A mente humana não é um laudo. A violência não nasce do nada, mas também não se explica por uma única variável. Trauma, contexto social, história familiar, biologia, escolhas e oportunidades conversam entre si de maneira intrincada. Qualquer ferramenta psicológica que pretenda falar desse emaranhado precisa ser usada com humildade. A função ética de um teste nunca é reduzir uma pessoa a um rótulo. É ampliar a visão sobre um sofrimento, criar possibilidades de cuidado, indicar caminhos de tratamento. Em busca de cliques, é fácil transformar nomes em ícones de maldade. Em busca de verdade, é preciso transformar curiosidade em responsabilidade.
No fim das contas, as manchas nos olham de volta porque nos lembram de algo essencial. Cada um de nós cria significados todos os dias, muitas vezes sem perceber. Diante do trânsito, do silêncio de alguém que amamos, de uma notícia difícil, de um elogio inesperado, a nossa mente fabrica histórias para suportar viver. Algumas histórias nos salvam. Outras nos enrijecem. Outras nos traem. A graça do Rorschach é oferecer um cenário seguro para que essas histórias apareçam, sejam nomeadas e reorganizadas. Não para nos definir, e sim para nos devolver autoria.
Hermann Rorschach morreu cedo, mas deixou esse convite persistente. Diante da ambiguidade, não fuja. Observe como você pensa, sente e narra. A vida real é feita de manchas que ninguém consegue enquadrar perfeitamente. O trabalho de saúde mental é transformar borrões em contornos habitáveis. A ciência exige rigor. A clínica exige humanidade. As duas, juntas, nos lembram que não há teste que substitua a dignidade de uma história bem cuidada. E se Tremembé nos faz revisitar casos como os de Suzane von Richthofen, Elize Matsunaga, os irmãos Cravinhos e o casal Nardoni, que seja para amadurecer o debate público. Curiosidade é o começo. Cuidado é o destino.
Sobre a autora
Jéssica Martani é médica psiquiatra, especialista em TDAH, saúde mental e regulação emocional. Coordena a pós-graduação em TDAH do Instituto TDAH, reconhecida pelo MEC, em parceria com a Universidade Anhanguera. É colunista da Bons Fluidos (Editora Caras) e criadora do canal Brilhantemente, onde traduz temas complexos e reflexões acessíveis para quem busca equilíbrio emocional e transformação pessoal. Saiba mais em Instagram e YouTube: @dra.jessicamartani
