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As ilhas italianas que viraram manicômios e silenciaram gerações de pacientes
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As ilhas italianas que viraram manicômios e silenciaram gerações de pacientes

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Aventuras Na História
28/06/2025 19h00
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©Divulgação/Arquivo Histórico de San Servolo
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Durante mais de um século, as hoje discretas ilhas de San Servolo e San Clemente abrigaram duas das maiores instituições psiquiátricas da Itália. Por décadas, esses locais receberam pacientes com uma ampla variedade de condições, como epilepsia, alcoolismo, surtos psicóticos e, sobretudo, a então chamada insanidade pelágica — estágio avançado da pelagra, uma doença causada por deficiência de vitamina B3 (niacina).

A pelagra assolou o norte da Itália entre o final do século 18 e o início do século 20, com efeitos especialmente cruéis sobre a população rural. O prato básico da dieta dos camponeses era a polenta, feito de fubá, barato e abundante, mas carente de nutrientes essenciais. Com o tempo, essa alimentação desequilibrada levava ao surgimento de dermatite, diarreia, demência e, em casos mais extremos, a morte.

Muitos pacientes chegavam aos hospitais psiquiátricos com lesões na pele, sofrimento gastrointestinal intenso, além de sintomas de depressão, demência e comportamentos violentos contra os outros ou a si mesmos.

A primeira instituição

Segundo informações da revista Smithsonian, San Servolo foi a primeira das ilhas a receber pacientes psiquiátricos. Colonizada originalmente por monges beneditinos no século 7, tornou-se hospital militar em 1716 e, em 1725, acolheu seu primeiro paciente com distúrbios mentais.

A instituição logo passou a aceitar outros pacientes provenientes de famílias ricas que podiam pagar por sua estadia. No entanto, a maioria da população não teve tanta sorte.

Aqueles que eram 'loucos' e pobres eram enviados para a prisão e considerados criminosos", disse Fiora Gaspari, chefe do arquivo histórico de San Servolo, à fonte.

Em 1809, o hospital foi oficialmente convertido em um manicômio público para toda a região do Vêneto e áreas vizinhas. A partir do início do século 19, o governo napoleônico passou a enviar para lá, às custas do Estado, pessoas pobres com doenças mentais que antes seriam simplesmente jogadas em prisões.

Na segunda metade do século 19, com o avanço da pelagra, San Servolo começou a receber cada vez mais pacientes acometidos pela insanidade pelágica, principalmente homens adultos em idade produtiva. Somente no ano de 1879, o país registrou quase 100.000 casos, sendo que mais de um terço dos pacientes estavam concentrados no Vêneto.

Pacientes no hospital de San Servolo no início de 1900 / Crédito: Divulgação/Arquivo Histórico de San Servolo

A doença, que afetava principalmente pessoas entre 25 e 50 anos, atingia de forma desproporcional as mulheres, sobrecarregadas por uma vida de trabalho no campo, tarefas domésticas e maternidade.

Hospital feminino

Em resposta ao agravamento da crise, foi fundada em 1873, na vizinha ilha de San Clemente, uma instituição voltada exclusivamente para mulheres.

Mas, em poucos anos, ambos os hospitais ficaram superlotados. Quase metade das pacientes admitidas na instituição feminina até 1887 eram vítimas de pelagra, e os corredores estreitos, as enfermarias coletivas e a carência de profissionais de saúde agravaram a situação. Em 1887, um único médico era responsável por mais de 330 pacientes.

"A superlotação naturalmente resultou em degeneração e maus-tratos aos pacientes", disse Egidio Priani, psicólogo clínico e pesquisador da Universidade de Leicester, na Inglaterra.

A situação dos internos

Muitos dos internos vinham de regiões rurais e nunca haviam visto o mar. O transporte até as ilhas era feito por barco ou gôndola, o que aumentava o sentimento de abandono e desorientação. Alguns tentavam fugir, outros mergulhavam na água na esperança de escapar.

Ao chegar, os pacientes passavam por uma rotina padronizada: eram lavados, trocados e fotografados para fichamento — um procedimento que unia intenção científica e propaganda institucional. Os álbuns com retratos dos doentes "antes e depois" ainda podem ser vistos hoje no museu de San Servolo.

As condições nas instituições, vale destacar, mudavam com base na época e em seus diretores. Sob a direção do médico Prosdocimo Salerio (1857–1877), San Servolo adotou uma abordagem mais humanizada. Os pacientes eram encorajados a caminhar, ouvir música religiosa e receber visitas. Houve uma tentativa de reduzir o uso de contenções físicas e medicamentos agressivos.

Pacientes do sexo feminino alojadas no hospital de San Clemente no início de 1900 / Crédito: Divulgação/Arquivo Histórico de San Servolo

San Clemente, por outro lado, foi descrito por visitantes como um lugar de barulho, dor e desespero. O médico australiano George Tucker chegou a escrever, após uma visita, em 1884: "Cinquenta mulheres foram presas de várias maneiras - tiras, jaquetas, mancos, etc. - seus pés estavam azuis de frio".

Estigma

Com dieta mais rica durante a internação, muitos pelagrosos apresentavam melhoras dentro de poucos meses. No entanto, a doença era cíclica. Pacientes retornavam para suas casas, retomavam sua alimentação deficiente, e acabavam voltando às ilhas anos depois. Em alguns casos, esse ciclo se repetia por toda a vida.

Mas, ao receber alta, os ex-pacientes enfrentavam outro desafio: o estigma da institucionalização. Muitos eram vistos como ex-criminosos, rejeitados pela comunidade e, em geral, silenciados dentro das próprias famílias. Esse silêncio perdurou por décadas. Hoje, descendentes procuram o museu de San Servolo em busca dos prontuários e fotografias dos parentes internados, tentando reconstruir histórias há muito esquecidas.

San Servolo fechou as portas como hospital psiquiátrico em 1978, após a aprovação da Lei Basaglia — que determinou o fim dos manicômios e instituiu uma nova política de saúde mental baseada no atendimento comunitário. San Clemente resistiu até 1992, mas teve o mesmo destino. A primeira instituição deu lugar a um museu e um centro universitário, enquanto que a segunda foi transformada em um resort de luxo.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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