Como a ocupação alemã transformou a forma como a França se alimenta

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Em junho de 1940, os alemães ocuparam mais da metade da França em apenas seis semanas. Com o avanço das tropas, a escassez se instalou: pão, carne e queijo passaram a ser racionados. Em 1942, havia quem sobrevivesse com apenas 1.110 calorias por dia. Mesmo com o fim da guerra, em 1945, o controle estatal sobre alimentos continuou até 1949.
A população se viu obrigada a improvisar. Chicória substituiu o café; sacarina, o açúcar; margarina e banha, a manteiga. Tubérculos pouco valorizados, como topinambos e nabos-suecos — antes usados para alimentar animais — passaram a ocupar o lugar das batatas, racionadas a partir de novembro de 1940. Depois da guerra, esses vegetais foram praticamente banidos das mesas francesas. Tornaram-se símbolo de privação.
O pão também mudou. Baguetes brancas, populares antes do conflito por escaparem ao controle de preços, foram suprimidas por versões mais escuras e densas, feitas com adição de farelo, batata, castanhas ou trigo-sarraceno. Por lei, era proibido vender pão fresco — tentativa de torná-lo menos apetitoso e controlar o consumo.
A escritora Kitty Morse, neta de franceses, só descobriu os relatos e receitas da época da ocupação após a morte da mãe. O material, transformado no livro Agridoce: um diário de guerra e receitas tradicionais da França ocupada, revela uma realidade pouco discutida mesmo por quem viveu o período. “Minha mãe nunca mencionou nada disso para mim”, disse à BBC.
Já Aline Pla, que tinha nove anos em 1945, lembra bem da dureza. Criada por merceeiros no sul do país, recordou ao veículo que famílias trocavam cigarros por comida, e que cada pessoa levava seu próprio pedaço de pão ao visitar alguém.
A escassez criou uma mentalidade de subsistência que marcou toda uma geração. No campo, colhiam-se cogumelos e castanhas; nas cidades, plantava-se cenoura em caixas de janela. Até o Jardim das Tulherias, em Paris, virou horta comunitária. Produtos foram renomeados para parecerem mais nutritivos — como o purê de castanhas Génovitine, da Clément Faugier. Na Camarga, salicórnia tomou o lugar do feijão-verde.
Para o historiador Patrick Rambourg, autor de História da Culinária e Gastronomia Francesa, o gosto salvou a chicória do esquecimento: seu café sobreviveu ao pós-guerra e segue popular no norte do país. O Ricoré, mistura de chicória com café instantâneo, está nas prateleiras desde os anos 1950. Hoje, marcas como Cherico tentam reposicioná-lo como bebida saudável e sustentável, explicou à BBC.
Já ingredientes como o topinambo e o nabo-sueco caíram em desuso, considerados "comida de guerra". Além da rejeição social, muitos desses alimentos foram associados à humilhação da ocupação, o que reforçou sua exclusão da culinária cotidiana nas décadas seguintes.

De volta ao cardápio
O tempo mudou a percepção desses alimentos: em Paris, os “légumes oubliés” (“vegetais esquecidos”) voltaram aos cardápios de bistrôs como o Le Bon Georges e bares contemporâneos como o Paloma. Para o chef Léo Giorgis, do L’Almanach Montmartre, o movimento começou há cerca de 15 anos. “Agora estão por toda parte. No inverno, são essenciais — sem eles, só teríamos repolho e abóbora”, relatou à BBC.
O pão francês seguiu trajetória parecida. Depois do conflito, a demanda por baguetes brancas disparou. Pierre Poilâne, no entanto, recusou-se a seguir a tendência e manteve a produção dos pães rústicos que fabricava desde os anos 1930 — decisão que o afastou dos sindicatos de padarias.
Décadas depois, a maré virou: entre 2015 e 2025, o consumo de baguetes caiu 25%, enquanto pães integrais e com grãos antigos ganharam espaço. “Não é ruim voltarmos a pães um pouco menos brancos”, disse Pla.

Mais importante que os ingredientes foi a mudança de mentalidade. “O que sobra da guerra é mais um estado de espírito do que práticas culinárias”, resume Rambourg. Grenard concorda: o desperdício zero tornou-se valor central. Muitos franceses passaram a estocar alimentos, fazer conservas e buscar plantas comestíveis.
A prática de forrageamento, antes ligada à necessidade, hoje é vista como símbolo de consciência ambiental e saúde. Especialistas apontam que esse reaproveitamento de alimentos e ingredientes locais foi um dos precursores do atual movimento de gastronomia sustentável na Europa.
Em Milly-la-Forêt, François Thévenon transmite técnicas herdadas da avó para identificar plantas comestíveis. “Depois da guerra, as pessoas queriam ter certeza de que nunca mais passariam necessidade”, afirmou ao veículo. Até sua avó, que antes vivia da coleta, passou a comer carne em todas as refeições.
Hoje, mais de 80 anos após o Dia D, receitas e hábitos que nasceram da privação ganham nova vida. Não apenas como resgate cultural, mas como resposta às mudanças climáticas, à crise ambiental e ao desejo de reconexão com a terra.
Para ApolloniaPoilâne, neta do fundador da padaria homônima, o impacto da guerra ultrapassou fronteiras. “Ela não mudou só a alimentação da França”, destacou à BBC. “Mudou a forma como o mundo inteiro come.”


