Espiões, censura e fome: A história 'esquecida' do Rio de Janeiro na Segunda Guerra

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As narrativas sobre a Segunda Guerra Mundial quase sempre se concentram em grandes campos de batalha na Europa, nas movimentações de tropas e nos discursos inflamados de líderes mundiais. No entanto, um novo livro publicado pelo jornalista, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras Ruy Castro expõe uma faceta esquecida do conflito: como ele impactou a vida da população que vivia no Rio de Janeiro na época.
Conhecido por suas obras sobre a bossa nova, Ipanema e biografias de personalidades como Nelson Rodrigues e Garrincha, Castro se volta para um capítulo soterrado da história carioca em "Trincheira Tropical – A Segunda Guerra Mundial no Rio".
"É quase uma história da vida privada no Rio durante o conflito, falando sobre tudo que aconteceu na cidade por causa da guerra", disse ele, em entrevista à BBC News Brasil.
Recém-homenageado na Bienal do Livro de 2025, o escritor revelou que sua nova obra é fruto de seis anos de intensa pesquisa. Durante esse período, leu mais de mil livros e mergulhou em jornais censurados da época, além de memórias de militares, políticos, empresários, escritores e diplomatas.

Espiões na capital
Naquele tempo, como destacou Castro, o Rio de Janeiro — então capital federal — concentrava os poderes político, militar e diplomático do país. Em razão de sua localização estratégica e papel central no cenário nacional, a cidade tornou-se um verdadeiro epicentro da espionagem internacional durante a Segunda Guerra.
Segundo o jornalista, cerca de dois mil espiões alemães se encontravam na cidade, operando rádios clandestinos escondidos em casas, com antenas disfarçadas nos telhados.
Eles enviavam informações sobre embarcações brasileiras carregadas de alimentos e matéria-prima para os Aliados. Posteriormente, submarinos nazistas afundavam esses navios e matavam centenas de pessoas. Somente em 1942, mais de mil brasileiros perderam a vida nesses ataques silenciosos no Atlântico.
"O Rio recebeu não só espiões e contra-espiões, como também refugiados da guerra. Mas isso nunca tinha sido contado. Foi isso que me empolgou a buscar informações durante seis anos", contou.
Mudanças drásticas
O conflito fez com que o cotidiano da cidade mudasse drasticamente e ameaças de bombardeio levassem à criação de uma rígida rotina de blecautes. À menor suspeita de ataque aéreo, as sirenes soavam, e as luzes precisavam ser imediatamente apagadas.
Para quem morava na orla, bastava uma vela acesa para se tornar alvo potencial. Dizia-se que a chama podia ser avistada por submarinos a quilômetros de distância. Era necessário cobrir as janelas com panos escuros, e os postes da Avenida Atlântica, em Copacabana, tinham as lâmpadas voltadas para o mar pintadas de preto.

Essas medidas também afetaram a vida noturna. Casas de espetáculo vedavam janelas para seguir funcionando, jogos de futebol à noite foram proibidos, e até fumar na rua podia causar problemas. Curiosamente, um grupo adorava os blecautes: os jovens namorados. Afinal, o breu absoluto de lugares como o Leme e o Arpoador criava o cenário perfeito para encontros discretos.
Além das mudanças urbanas, o conflito trouxe escassez e fome. Afinal, a guerra paralisou o comércio internacional e desviou a produção industrial dos países desenvolvidos para o esforço bélico. Geladeiras, automóveis, peças de bonde, tudo vinha de fora — e simplesmente parou de chegar.
A carne brasileira era enviada para os Estados Unidos, então não havia para comprar, e o bombardeio de navios impediu o transporte interno de mercadorias. Enquanto o Norte do Brasil produzia açúcar em excesso, o Sudeste padecia com a falta. Veio o racionamento de leite, trigo, ovos, tudo distribuído em cotas semanais.

O Brasil na Guerra
Em meio à repressão do Estado Novo de Getúlio Vargas, ironicamente, foi a população quem forçou a entrada do Brasil na guerra. Pressionado por manifestações diárias organizadas pelos estudantes da UNE, Vargas não conseguiu conter os protestos. Apesar da censura, a comoção pública diante dos ataques a navios brasileiros se impôs.
A entrada formal do Brasil na guerra, portanto, foi resultado de uma mobilização interna e popular — ainda que o país fosse, naquele momento, uma ditadura.
No front, os chamados pracinhas — soldados brasileiros enviados à Itália — enfrentaram horrores dos quais pouco se falou por décadas. Suas cartas eram censuradas, e no Brasil corria a versão de que estavam vivendo como turistas de luxo na Europa, "namorando italianas, comendo do bom e do melhor e esquiando na neve". A realidade, no entanto, era bem diferente. Muitos pracinhas assistiram companheiros sendo fuzilados ao seu lado.
Um dos relatos recuperados por Castro descreve um soldado atingido na cabeça. "O capacete caiu, ele caiu com a cabeça por cima e o sangue escorreu, enchendo o capacete", detalhou o jornalista.
Ao retornarem, muitos desses homens preferiram o silêncio. Não havia espaço para compartilhar seus traumas — nem vontade. A guerra que viveram, a dor que carregavam, pouco tinham a ver com o mito heroico que se construiu aqui.


