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O falar caiçara está morrendo
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O falar caiçara está morrendo

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Aventuras Na História
19/06/2025 12h00
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©Prefeitura de Paranaguá
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Livros de História do Brasil ensinam que a nacionalidade do país foi formada por portugueses, indígenas e negros. A formação caiçara, evidentemente, também é essa.

Caiçara é como é denominado o morador do litoral de São Paulo e diferentemente de outros brasileiros, a grande maioria desse povo viveu até muito pouco tempo isolada, separada, distante dos centros urbanos.

Foi a Rodovia Rio-Santos que deu a essa população a oportunidade de ingressar de vez por todas no país. O isolamento preservou sua cultura, tomando-se o termo como a maneira de ser e viver. E mais: criou e cultivou seu linguajar.

Antes de ser escritora fui jornalista, repórter. Repórter ainda continuo sendo, impossível tirar-me a marca que a profissão gravou em mim durante mais de 60 anos. E, assim, férias no litoral eram observações e anotações. Tive, ainda muito jovem, o privilégio de conhecer a senhora Virgínia Lefevre, que fazia assistência social em Ubatuba de um modo diferente e simples. Construía escolas e as entregava mobiliadas à prefeitura local, obrigando-a, dessa forma, a nomear professoras.

Acompanhei essa ação inteligente e inovadora indo com Dona Virgínia a praias aonde só se chegava de barco: Felix, Cassandoca, Almada e Engenho, Picinguaba, Ubaturirim e Sertão do Ubatumirim.

A essa última só se chegava depois de duas horas de barco e mais quatro a pé, subindo a serra à sombra da Mata Atlântica. Eram comunidades carentes, usuárias de um quase dialeto e foi à beira de um regato límpido no Sertão de Ubatumirim que anotei as primeiras palavras que me chamavam atenção.

Impressionei-me, também, com o uso frequente de diminutivos empregados em se tratando dos filhos: "Essazinha pegou febre, ficou ruinzinha pra baler". "Essesinho tem munta ladinice, mas inda não sabe o b a ba".

Daí para frente tive um caderno para apontar as palavras usadas nessa região do litoral e em outras, como Ilhabela e São Sebastião, onde me fixei durante quase 50 anos na praia de Juquehy.

A troca do v pelo b – "Bede que boniteza de sol" me fazia lembrar o norte de Portugal, principalmente a cidade do Porto. Mas a prosa toda me encantava. E o ritmo da fala idem, cantado, rápido, sonoro.

"Lhai que mar revoltoso, a livrança dele é que estaba no raso, canoa birou mas ele se salvou" – "Bou atochar comida nesse minino" – "Quando aparece assim aguagem grossa é curdume que bem bindo" – "Não apreceio pessoa escamosa" – "Mulher desbandeirada, essa, engambelou marido lhe botando galho e depois adonou-se e meu filho, pobrezinho obedecia a tal como se tivesse ela lhe ponhado catiça" – "Bede que se casaram e os pais barrearam casa para que bibessem".

"Arrelá que bergonhoso ir fazer calungagens na porta de outrem" – "Binde ber como dicasco mandioca e seguidamente ralo, ponho na prensa e depois forneio" – "Minha sogra tá esqauecdiça, num presta mais pra tecer rede de imbira" – "A lá ó, a lancha fundeando arriba" – "Antonte bi a ela chegando adornada como se fosse em baile de rala-bucho" – "Acoitaste um bando de malndro em bossa casa" – "Trásdonte deu peixe a rodo" – "Fecha a taramela que não bos dou ousadia de comigo falar" – "Tô há dias com um argueiro nos zóio"- "Noite de lua num presta pra arrastar picaré. Os peixe vê a rede".

Vento Endiabrado

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Capa do livro Vento Endiabrado - Divulgação

O caderninho que eu tinha foi virando um cadernão. Até que resolvi escrever um romance “Vento Endiabrado”, no qual personagens caiçaras usam a linguagem que anotei durante anos — e é uma pena que esteja morrendo.

Turistas em bateladas foram chegando depois da Rio-Santos e, antes deles, bandos de nordestinos e mineiros que vieram para construir a estrada e depois trouxeram parentes em busca de uma vida melhor.

Veio o progresso, veio a “televisom”, a juventude caiçara já não fala como os avós e os avós e bisavós que se serviam dessa linguagem tão pitoresca — cheia de lusitanismos e de expressões antigas. Estão desaparecendo levados pela morte.

Queria muito que o falar e a cultura caiçaras não desaparecessem. Mas turistas, migrantes e a “televisom” estão aí para acabar com tudo. Pelo menos fiz o que achei ser correto, registrando o que ouvi. Durante tantos anos. Tenho muita pena desse desaparecimento.


*Regina Helena de Paiva Ramos é jornalista há sete décadas, formada pela Faculdade Cásper Líbero, percorreu de redações impressas ao telejornalismo: foi repórter e crítica em O Tempo, A Gazeta, Popular da Tarde e nas revistas Manchete e Visão; na TV, colaborou com a Excelsior e a Bandeirantes.

Ela também é autora de várias obras, entre elas o último lançamento “Vento Endiabrado”, em que transforma a fictícia praia de Jacurici em um espelho feroz e profundamente brasileiro.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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