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Pesadelo Tropical: romance une faroeste e barroco em critica à violência do Brasil Colônia
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Pesadelo Tropical: romance une faroeste e barroco em critica à violência do Brasil Colônia

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Aventuras Na História
31/05/2025 15h00
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©Divulgação/Marcos Vinícius Almeida
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Em seu livro "Pesadelo Tropical", o jornalista e escritor Marcos Vinícius Almeida funde faroeste, barroco e pós-apocalipse para revisitar criticamente a violência que marcou a formação colonial do Brasil.

Inspirado na lenda de Januário Garcia Leal, o temido Sete Orelhas — figura bastante conhecida no Sul de Minas e especialmente presente no imaginário da cidade natal do autor, Luminárias —, o romance recria o Brasil Colônia como um cenário devastado, onde mercenários, indígenas e justiceiros disputam território em meio ao caos.

Almeida destaca que era criança quando ouviu sobre o Sete Orelhas pela primeira vez. "Eu tinha uns seis ou sete anos quando ouvi a história pela primeira vez. Uma professora, talvez dando uma aula sobre cultura local, levou um livro bem velhinho e leu para a gente, ao longo dos dias. Fiquei fascinado com aquela atmosfera, ainda mais porque era uma história que tinha acontecido muito próximo do meu cotidiano", contou ao Aventuras.

"Quando eu ia com minha mãe até Três Corações, numa estrada que até hoje é de terra, sempre passava na fazenda do Tira Couro, em São Bento Abade, lugar no qual o irmão do Sete Orelhas tinha sido esfolado vivo. Essa cena do esfolamento me deixou mais impressionado que a vingança do Sete Orelhas. Com o passar dos anos, comecei a pensar em como aquela história era uma espécie de microcosmo da violenta história colonial."

Publicado pela editora Aboio, o livro de Almeida foi desenvolvido ao longo de sete anos, dois deles com apoio da FAPESP, e mescla história e ficção com influências que vão de Cormac McCarthy a Ovídio.

Faroeste barroco

Ambientado em um Brasil Colônia devastado, o romance é descrito pelo autor como um "faroeste barroco". A escolha desse estilo, explica Marcos Vinícius, não foi aleatória: afinal, a lenda já carregava em si elementos desse universo. O escritor destaca ainda que a maioria dos elementos do livro foram inspirados em fatos que constam na historiografia, no folclore e na memória oral.

Fotografia de Marcos Vinícius Almeida na frente de monumento em homangem da Januário Garcia / Crédito: Divulgação/Marcos Vinícius Almeida

Na obra "A geografia do crime: Violência nas Minas Setecentistas", de Carla Anastasia, o autor encontrou a descrição da gangue do Montanha, que é apresentando como um cigano. Já a ideia de que a serra da Mantiqueira, infestada de bandidos, era uma "morada do diabo" aparece no livro "Brasil: uma biografia", de Heloisa Murgel Starling e Lilia Schwarcz.

Havia várias gangues de proscritos construindo alguma forma de poder paralelo ao poder oficial. Essa atmosfera toda, e esses personagens expressivos, me pareceram muito semelhantes com o romance Meridiano de sangue, de Cormac McCarthy, que trata de um gangue de mercenários caçadores de escalpos nos EUA", diz o jornalista.

Almeida destaca que, para ele, a formação do Brasil não tem glória nem heroísmo: é um rastro de morte deixado por bandeirantes, missionários e colonizadores. "O colono português é, na verdade, um dos cavaleiros do Apocalipse. O legado das bandeiras, o avanço da Coroa e da Igreja pelos territórios dos povos originários, é o avanço da morte e da destruição. O Brasil nasce com a ruína do Brasil", afirma.

O esfolamento e a crítica

O esfolamento — tanto como evento histórico quanto como símbolo — aparece como eixo de crítica. A imagem da capa do livro, por exemplo, traz São Bartolomeu, mártir esfolado vivo.

"Ele aparece na parede do altar da Capela Sistina, no Juízo Final, de Michelangelo. São Bartolomeu, com um punhal numa mão e na outra segura a própria pele, como um lençol. Mas essa imagem do esfolamento é mais antiga", destaca. "Ele está na mitologia grega, no duelo entre Mársias, o sátiro e Apolo, o Deus da Razão."

"Mársias é uma espécie de fauno, um ser conectado à natureza e que toca flauta, um instrumento regulado pelo sopro corporal. Apolo toca lira, matematicamente afinada pela medida objetiva das cordas. Quem vencer o duelo musical, essa é a aposta, pode fazer o que quiser com o outro. Ora, Apolo, o arquétipo da racionalidade, vence o duelo, amarra Mársias numa árvore e o esfola vivo."

A brutalidade do ato, segundo o autor, remete à própria lógica colonial: Apolo vence o fauno Mársias e o esfola vivo, simplesmente porque pode. Essa lógica — de poder sobre o outro, de destruição do corpo e da natureza — estrutura o avanço colonial europeu sobre o território americano.

Dificuldades

A escrita do romance foi atravessada por sete anos de pesquisa e dificuldades pessoais. Para viabilizar o projeto, Almeida desenvolveu um mestrado na PUC-SP unindo teoria literária e escrita criativa, com apoio da FAPESP. Mesmo assim, enfrentou desafios financeiros e as incertezas da pandemia. A retomada da obra coincidiu com o nascimento da editora Aboio, que publicou o livro em 2023.

"Ter tempo para escrever e pesquisar, num país como o nosso, que não tem programas de fomento à criação literária, é muito complicado. São pouquíssimas oportunidades, quase nada", destacou o escritor. "Mesmo com a bolsa foi tudo muito desafiador", disse ele.

Monumento que relembra lenda do "Sete Orelhas" / Crédito: Divulgação/Marcos Vinícius Almeida

Descoberta impactante

Questionado acerca de qual teria sido a descoberta mais impactante ao longo da pesquisa, Almeida respondeu: perceber que o personagem Sete Orelhas, celebrado como real por gerações, talvez tenha nascido da ficção — sendo inclusive um dos primeiros personagens de ficção da Literatura Brasileira.

De acordo com o jornalista, a primeira aparição do personagem em registro escrito foi num folhetim de 1843, assinado por Joaquim Norberto.

"Isso foi um choque pra mim. Até hoje as pessoas em São Bento Abade falam que são parentes do Sete Orelhas. Mas talvez ele não tenha nunca existido fora dos livros", destacou.

Uma nova leitura

Essa revelação sobre a origem do Sete Orelhas atravessa o livro como um comentário sobre a fragilidade da memória e a disputa constante em torno do passado.

"No livro, tento desconstruir algumas idealizações e mostrar como um personagem de ficção se transformou num personagem real. E pior ainda: como uma gangue de proscritos foi canonizada e monumentalizada. Não havia nenhum tipo de glória nos massacres", disse o autor de Pesadelo Tropical.

O escritor convida o leitor a adotar uma postura crítica diante da construção do passado, questionando a confiabilidade de documentos, arquivos e livros. Para ele, é fundamental confrontar diferentes fontes e reconhecer que a história é feita de disputas, interpretações e lacunas.

Almeida, no entanto, rejeita o revisionismo histórico que nega consensos sobre eventos como a tortura na Ditadura Militar ou os massacres indígenas promovidos pelos bandeirantes. Em sua visão, a história é uma disciplina em constante movimento, e mesmo a verdade precisa ser conquistada.

Como escreveu Walter Benjamin nas suas teses sobre o conceito de história, nem mesmo os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. Esse inimigo é a extrema-direita, ao mesmo tempo violenta e obscurantista, inimiga sistemática de todos aqueles que foram derrotados e explorados ao longo da história."

"É a história desses vencidos que tem que ser contada", afirma ele, que destaca: "se olharmos para os vencedores, colocamos Borba Gato num pedestal, chamamos a maior rodovia do estado de São Paulo de Bandeirantes. Se olharmos pelo ponto de vista dos vencidos e dos explorados, Borba Gato é um assassino. E como muitos dos bandeirantes."

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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