DNA do Brasil revela exclusão genética e uma miscigenação violenta no país

Tecmundo






Um estudo recente, liderado por um consórcio de pesquisadores brasileiros, pretendia, a princípio, mapear variantes genéticas relevantes para o metabolismo de fármacos e, assim, aprimorar a medicina de precisão no Brasil. Para isso, a equipe analisou o genoma completo de 2 723 participantes distribuídos por todas as regiões do país, compondo uma das maiores coortes genômicas latino-americanas já reunidas.
No entanto, ao vasculhar o DNA atrás de mutações que ajudam a explicar por que certos remédios funcionam bem para uns e fazem mal para outros, os cientistas acabaram se deparando com um relato triste, e profundamente incômodo, das origens da população brasileira: celebrada como romântica e harmoniosa, a miscigenação do país revela marcas de violência sistemática.
Primeira autora do artigo publicado na revista Science, Lygia da Veiga Pereira, geneticista da Universidade de São Paulo (USP), explica em comunicado que, até uma década atrás, 80% dos dados genéticos humanos vinham só de europeus, reflexo de pesquisas concentradas no Hemisfério Norte e no Sul-Sudeste brasileiros, menos miscigenados. Para corrigir essa lacuna, ela idealizou o projeto DNA do Brasil, apoiado pelo Ministério da Saúde.
Traços de violência no DNA do Brasil

A busca por variantes genéticas novas nos 2.723 genomas completos de alta cobertura da população brasileira superou todas as expectativas, conta a coautora Tábita Hünemeier, da USP. “Detectamos 78 milhões de variantes, um valor muito alto, dos quais quase 9 milhões não tinham registro em nenhum outro banco de dados”, afirmou a geneticista, destacando a inclusão de grupos genomicamente negligenciados.
Definindo a colonização da América como o maior deslocamento populacional na história humana, os autores relembram que, no Brasil, 5 milhões de europeus e 5 milhões de africanos escravizados se juntaram aos cerca de 10 milhões de indígenas existentes. Estes povos, que falavam mais de mil idiomas, foram eliminados em um extermínio que chegou a 83% da população no interior do país e 98% no litoral.
Os resultados da estrutura genética mostram que a linhagem paterna, expressa no cromossomo Y, é 71% europeia, ao passo que o DNA mitocondrial (herdado exclusivamente da mãe) traz uma herança 42% africana e 35% indígena. Isso revela uma mistura não equilibrada, na qual homens europeus tiveram filhos, muitas vezes à força, com mulheres indígenas ou africanas escravizadas, explica Hünemeier no comunicado.
Impactos da realidade genômica brasileira na saúde pública

Os resultados da pesquisa de larga escala têm implicações éticas e sociais, que vão além do contexto farmacogenômico. Primeiramente, mostram que populações negras e indígenas no Brasil enfrentam, além de desigualdade socioeconômicas, consequência de seus perfis genéticos peculiares, que podem alterar a eficácia ou a toxidade de medicamentos calibrados para populações europeias.
Em segundo lugar, os achados evidenciam a necessidade de políticas de reparação que considerem tanto o passado brutal quanto as consequências biomédicas contemporâneas dessa violência. O DNA revelou que a miscigenação brasileira não foi a festa de integração cultural apregoada, mas uma fusão forçada sob violência colonial, reproduzida ao longo de séculos.
Reconhecer essa realidade biológica não é mera questão de memória: é pré-requisito para políticas de reparação e para que a medicina de precisão não repita, em escala molecular, as injustiças do passado. “É muito bonito enxergar no DNA o que já sabíamos dos livros de história”, conclui Lygia da Veiga Pereira. Talvez nem tanto.
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