O som do silêncio: A herança histórica sobre a masculinidade paterna

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Embora hoje pareça natural, o reconhecimento da infância como uma fase distinta da vida humana é relativamente recente, datando de meados do século 17. Para muitos, essa constatação pode soar como uma simples nomeação ou categorização de algo que sempre existiu. No entanto, as categorias moldam a maneira como percebemos e imaginamos o mundo.
Vale lembrar que, antes desse reconhecimento, o termo infans — literalmente, "sem voz" — referia-se não apenas às crianças, mas também aos soldados de baixa patente, mulheres e filhos ou filhas consideradas ilegítimas, isto é, pessoas sem direito à herança ou à plena cidadania.
O mesmo período histórico que passou a reconhecer as necessidades de cuidado com a infância — a modernidade — foi também responsável por consolidar a ideia de que esse cuidado caberia quase exclusivamente às mulheres.
Um trabalho exigente, emocional e fisicamente desgastante, que por muito tempo sequer foi reconhecido como trabalho, sendo visto apenas como dever natural das mulheres.
Ainda hoje, ao observarmos algumas configurações familiares, não é raro perceber que, mesmo em lares compostos por pais e suas novas companheiras, a responsabilidade pelos cuidados das/os filhas/os dos homens tendem a recair automaticamente sobre as companheiras.
Mesmo a ideia de genialidade — tantas vezes atribuída aos homens — era frequentemente associada a um afastamento da vida doméstica. Pais e avôs "geniais" não deviam ser interrompidos enquanto liam, escreviam ou cuidavam das finanças da casa.
Quem nunca ouviu histórias de grandes escritores que se isolavam em seus escritórios e exigiam silêncio absoluto, como se o som das brincadeiras infantis ameaçasse sua produção intelectual?
A isso se somam as desigualdades raciais, já que o cuidado com as crianças muitas vezes era delegado a amas, babás e empregadas — quase sempre mulheres negras ou pobres —, perpetuando dinâmicas coloniais e de classe.
Paternidade
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Falar sobre paternidade, especialmente sob a ótica tradicional, nos leva inevitavelmente ao silêncio — à ausência. Mesmo em memórias afetivas, é comum que o pai ou o avô apareçam como figuras taciturnas, caladas, que demonstravam afeto com um olhar, um gesto contido ou, para ser mais direto, com a não participação. Uma presença que se fazia sentir mais pelo temor ou pela distância do que pelo envolvimento afetivo.
Seria reconfortante se tudo isso pertencesse apenas ao passado, a comportamentos hoje superados. Mas não é bem assim. Basta pensar na frequência com que histórias de pais que “não aguentaram” as demandas da criação dos filhos e “largaram tudo” são contadas como jornadas de autodescoberta, enquanto mães que ousaram seguir caminhos semelhantes são imediatamente rotuladas de irresponsáveis, loucas ou desnaturadas.
Hoje, esse silêncio paterno muitas vezes se manifesta como terceirização do cuidado. Psicólogos, terapeutas escolares, babás e outros profissionais de apoio são convocados a assumir funções que, idealmente, deveriam ser partilhadas pelos próprios pais e mães como parte de uma rede afetiva e cotidiana de cuidado. Esses profissionais são, sem dúvida, valiosos, mas deveriam atuar como complemento, e não substituição da presença parental.
Compartilhar o espaço da escuta com filhos e filhas, especialmente adolescentes, não é simples. Requer paciência, disposição para retomar assuntos, sensibilidade para encontrar o tom certo e, sobretudo, a prática da escuta ativa — algo que exige empatia, reflexão e esforço contínuo.
Tal como a energia dedicada a acompanhar uma criança que aprende a andar, ou os cuidados dirigidos a uma criança de cinco anos. Estar presente na vida emocional dos filhos é um desafio que envolve também confrontar o silêncio estrutural da paternidade e repensar a própria ideia de silêncio.
O silêncio, afinal, é uma construção relacional. Costumamos defini-lo em oposição ao barulho, ao ruído. No entanto, no contexto da paternidade, o oposto do silêncio não é a algazarra, mas pode ser justamente o silêncio da escuta — aquele que contempla, que aguarda o momento certo de falar, que acolhe, que mergulha nas camadas mais profundas das falas e dos silêncios de quem, até o século XVII, era considerado sem voz: as crianças e as mães.
*Jeder Janotti Júnior é doutor em Ciências da Comunicação pela Unisinos RS, e professor titular da Universidade Federal de Pernambuco, onde coordena o Laboratório de Análise de Música e Audiovisual no Programa de Pós-Graduação em Comunicação. Autor de Mãe, o pai não vai chorar?, ele aborda a masculinidade paterna imposta aos homens e os ritos de passagens que transformam dinâmicas familiares.


