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Liberdade literária no presídio: Uma viagem para além das grades de si
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Liberdade literária no presídio: Uma viagem para além das grades de si

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Aventuras Na História
30/05/2025 17h00
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©Getty Images
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Há pessoas livres sem leitura que têm medo de leitores encarcerados. Por que um livro aberto causa mais terror e ódio que uma arma em punho? Entre 2018 e 2021 fui professor voluntário de Leitura Criativa no Presídio Estadual Feminino em Aparecida de Goiânia (GO).

No primeiro dia, a agente carcerária perguntou: "você não tem medo delas te matarem?". Respondi que se tivesse medo não sairia nem de casa. Em algumas semanas, as agentes ficavam sentadas na porta da sala, tomando café — que as alunas faziam, assistindo às aulas.

No primeiro dia, a Rita Goiana, disse (brava) que estava ali pela remissão da pena (Lei 13.696/2018). Eu disse que se ela não atrapalhasse, poderia ficar. Aos poucos ela foi gostando. Um dia, a Rita contou à filha como estava bem e havia se tornado leitora de literatura.

Há anos a filha pedia que a mãe lesse e mudasse de vida. As duas se abraçaram e choraram. Posteriormente, a Rita voltou para casa e se estabeleceu num trabalho. Em poucas semanas, as alunas diziam que iriam para as aulas mesmo se não houvesse a remissão, passavam a semana esperando por aquele período. A diretora do presídio dizia como o clima (entre algumas) havia mudado.

O governo estadual levou indústrias para o presídio. O grupo do qual eu fazia parte lhes ensinava profissões e ajudava na ressocialização pós-prisão. Certamente, a sociedade foi beneficiada, famílias não foram novas vítimas de ex-criminosas ao se encontrarem com elas na rua, na igreja ou no mercado. Porém, esse trabalho é invisível, salvar uma vida que não se sabe que foi salva não repercute. Mas repercutiu.

Nunca falei disso em redes sociais, não tenho disposição para discutir o óbvio. Contudo, dei um depoimento numa das maiores páginas jurídicas do Brasil. Mexi numa caixa de abelhas numa rinha de galos, mas pensei: "Isso pode incentivar e oportunizar outros a confrontar seus próprios preconceitos".

Respondendo à pergunta se voltamos à vida vítimas mortas, respondi: "Tiramos várias vítimas do caixão porque as pessoas que foram recuperadas e saíram da prisão, saíram também do crime. Uma delas veio trabalhar conosco (por gratidão). Inclusive, ela morou com minha amiga por um tempo. Sim, minha amiga LEVOU UMA DELAS PARA CASA".

Uma jovem disse: "Comecei a ler totalmente contra suas aulas no presídio, agora sou totalmente a favor!". Respondi perguntas como: "Você visitou as vítimas?", "E se seus filhos fossem vítimas?", "Joga a chave da cadeia fora e deixa essas d5sgra*adas morr3rem à mingua", "A leitura de três livrinhos pode mudar um assassino?", "Sai da bolha, professor!", "Pare de romantizar bandido", "Esse aí é defensor dos direitos humanos".

Não desconsiderei a dignidade dos meus críticos, nem a legitimidade de algumas perguntas. Contudo, entrei (sem correr) e sai fortalecido dessa rinha com garnisés e zangões no meu encalço.

Mudança de vida

Nunca estive num lugar onde as pessoas tivessem tanta sede pelo conhecimento. Sem contar que havia máquinas de tear batendo na mesma sala. Professoras da alfabetização vinham participar das aulas. Certa vez, eu disse: "Semana que vem ensinarei como conviver com pessoas difíceis".

Uma delas, em tom de brincadeira, foi para a porta e falou: "Se você não der essa aula agora, você é um homem morto", eu ri, elas riram. Então, introduzi a aula: "Nunca tente dialogar com um convicto e intransigente. Senão, podem ser dois difíceis tentando facilitar seus próprios egos".

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Capa do livro 'Na Linha do Horizonte Está Escrito um Universo' - Divulgação

Houve momentos que ficamos em silêncio, inclusive, as máquinas de tear, diante do filme "A vida é bela", do poema "Canção do exílio", diante da "Teoria da Relatividade", da conturbada vida de Van Gogh e sua "A noite estrelada".

As paredes escavadas da prisão deram lugar a impressões de "São João Batista" de Da Vinci, e de "David" de Michelangelo. O escavamento das paredes sujas deslocou-se para os nossos peitos esburacados pelo espanto diante da vida de Anne Frank.

Quando a pandemia veio, na última aula, eu disse: "Se ninguém aprendeu nada, não se preocupem, eu aprendi muito com vocês. Meu filho mandou um abraço à todas".

Era terminantemente proibido qualquer contato físico, ficamos alguns segundos em silêncio, nos olhamos, peguei minhas coisas e fui embora, elas ficaram... Enfim, algumas aprenderam o valor da literatura e do ser humano. Cavei um tesouro que deixarei aos meus filhos, eles saberão tudo que passei no presídio como aprendiz. Seguirei ensinando, permanecerei aprendendo.


*Lucianno Di Mendonça é escritor, mestre em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e pós-graduado em Escrita Criativa pelo Núcleo de Estratégias e Políticas Editoriais (NESP). Licenciado em Letras e graduado em Teologia, foi professor de Leitura Criativa na Penitenciária Feminina Consuelo Nasser, em Aparecida de Goiânia. Como autor, lança o primeiro romance Na linha do horizonte está escrito um universo pela editora Novo Século, além de ter artigos científicos e participações em antologias e outras obras escritas e não publicadas ainda.

Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião do TIM NEWS, da TIM ou de suas afiliadas.
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