Os mistérios sobre o sistema de escrita mais antigo do mundo

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No fim do verão de 1856, um carteiro londrino entregou, sem saber, uma peça fundamental da história das origens da civilização. O envelope lacrado com cera foi deixado na sede da Royal Asiatic Society, no centro de Londres, e endereçado a Edwin Norris, secretário da instituição.
Por trás daquele ato rotineiro, iniciava-se um dos episódios mais notáveis da arqueologia moderna: a corrida para decifrar o sistema de escrita mais antigo da humanidade — o cuneiforme.
No centro dessa disputa estavam três homens. O primeiro deles, Austen Henry Layard, era filho de um funcionário colonial que fugiu da vida burocrática para viver aventuras no Império Otomano e terminou como um dos mais célebres arqueólogos de seu tempo.
Ele escavou palácios assírios no atual norte do Iraque, revelando à Europa a majestade esquecida de Nínive e Nimrud. Junto a seu protegido Hormuzd Rassam, desenterrou milhares de tábuas de argila repletas de sinais indecifráveis.
O segundo nome era Henry Creswicke Rawlinson, militar da Companhia das Índias Orientais. Ele se destacou por seu talento com línguas e pela coragem de escalar paredões em busca de inscrições milenares. Já havia decifrado o persa antigo e ansiava por novos feitos.
O terceiro, Edward Hincks, era um recluso pároco irlandês, brilhante linguista, mas atormentado pela ansiedade e pelo esquecimento. Desde sua reitoria em Killyleagh, ele se dedicava obsessivamente à decifração dos caracteres.
Como destacou a revista Smithsonian, até a década de 1840, pouco se sabia na Europa sobre as civilizações da antiga Mesopotâmia, como Assíria e Babilônia, sendo que a maior parte de seus registros estava soterrada sob séculos de areia e ruínas.
Layard, porém, trouxe à tona um tesouro arqueológico: baixos-relevos assírios, colossos alados, palácios e, sobretudo, milhares de tábuas cuneiformes que continham o que se supunha serem registros sobre leis, astronomia, religião e política. No Museu Britânico, essas relíquias começaram a ser expostas ao público, fascinando e inquietando os estudiosos.
Origem do cuneiforme
A escrita cuneiforme, criada pressionando cunhas em argila mole com uma cana do tipo Arundo donax, remonta a cerca de 3200 a.C., na Suméria. Seu nome vem do latim cuneus, que significa "cunha". Ao contrário dos hieróglifos egípcios, o cuneiforme era completamente abstrato, composto por logogramas e sinais fonéticos.

Apesar de aparentemente rudimentar, o sistema foi tão eficaz que se espalhou por várias civilizações: elamitas, hititas, urartianos, ugaríticos, persas. Ao todo, quinze línguas foram escritas com o cuneiforme, durante quase 2.500 anos. Contudo, ao final do primeiro século d.C., o sistema caiu em desuso, substituído por formas mais práticas de escrita e materiais como o papiro.
Um grande desafio
O desafio de decifrá-lo parecia impossível. O francês Carsten Niebuhr já havia notado, no século 18, que inscrições em Persépolis usavam três tipos distintos de sinais cuneiformes. Ele suspeitou que os textos eram paralelos em diferentes línguas, mas não foi adiante.
Na década de 1820, com a decifração dos hieróglifos egípcios por Champollion, cresceu o interesse em fazer o mesmo com o cuneiforme. Hincks foi o primeiro a perceber que o acadiano — a língua usada pelos babilônios e assírios — era semita, aparentado ao hebraico, e possuía logogramas compostos e silabários. Ele começou a alinhar os textos com o persa antigo conhecido, identificando padrões fonéticos e valores de sinais.
Mas a confirmação definitiva só viria anos depois, com o chamado "desafio do prisma". Em 1854, o protegido de Layard descobriu em Ashur um prisma octogonal coberto por 800 linhas de escrita acadiana. A peça, conhecida como Prisma de Tiglate-Pileser I, foi enviada ao Museu Britânico, onde Rawlinson começou a trabalhar em sua tradução.
Quando o pioneiro da fotografia William Henry Fox Talbot propôs à Royal Asiatic Society um desafio inédito — que quatro estudiosos traduzissem o texto de maneira independente para verificar a validade das interpretações —, iniciou-se o que se tornaria um marco na história da arqueologia.
Além de Talbot e Rawlinson, Julius Oppert, acadêmico alemão radicado na França, e Edward Hincks aceitaram o desafio. Hincks, entretanto, recebeu sua cópia da inscrição com atraso e teve menos da metade do tempo concedido aos demais. Apesar disso, produziu uma das traduções mais consistentes.

Em 20 de maio de 1857, um júri de seis eruditos se reuniu na sede da Royal Asiatic Society, em Londres, para abrir os quatro envelopes lacrados contendo as traduções.
As primeiras comparações revelaram divergências — nomes de animais e reis foram interpretados de formas distintas —, mas logo ficou claro que havia um grau notável de concordância entre os tradutores. Expressões inteiras, passagens sobre campanhas militares e listas de cidades apareciam com traduções quase idênticas. A decifração do cuneiforme estava, enfim, confirmada.
Os juízes elogiaram especialmente Hincks e Rawlinson, apontando que ambos haviam trabalhado com dedicação e acerto. O Athenaeum considerou o mistério do cuneiforme "definitivamente resolvido", e o Chambers’s Journal celebrou o feito como uma vitória do intelecto sobre o tempo.
Textos sumérios
Esse sucesso abriu as portas para a tradução de textos sumérios, uma língua isolada, anterior ao acadiano, que usava os mesmos sinais. Vieram à tona cosmologias, contratos de casamento, provérbios, tratados médicos e poemas épicos.
A mais impressionante descoberta ocorreu nos anos 1870, quando George Smith, funcionário do Museu Britânico e autodidata, traduziu um fragmento do mito do dilúvio encontrado em Nínive. O texto, parte da Epopéia de Gilgamesh, narra como Uta-napshti, avisado por um deus sobre um dilúvio iminente, constrói um barco e solta uma pomba após a tormenta — em uma clara semelhança ao relato bíblico de Noé, só que anterior a ele em pelo menos meio milênio.
A descoberta causou comoção global, uma vez que apontava que a cultura ocidental, com toda sua herança religiosa e literária, tinha raízes profundas no crescente fértil da Mesopotâmia.
No entanto, a glória nem sempre foi distribuída com justiça. Hincks, que morreu em 1866, teve seu nome frequentemente ofuscado por Rawlinson, que foi celebrado como o "Pai da Assiriologia". O reconhecimento devido ao clérigo irlandês viria apenas postumamente, à medida que historiadores revisaram as contribuições dos pioneiros.



