A contribuição do filósofo alemão Kant para a poética de Raul Seixas

Aventuras Na História






Raul Seixas, o poeta filósofo, conta, com ironia socrática, que o que fez com que ele abandonasse o curso de Filosofia foi a ‘chatice’ do filósofo alemão Kant.
Mas, como suas músicas e poemas deixam claro, Raul compreendeu Kant perfeitamente; pois as respostas às dúvidas filosóficas e transcendentais do filósofo estavam na vivência própria do mundo, que se expressava naturalmente em seu poetar pelos jardins.
Filosofia e artes
Outro filósofo alemão, Schelling, já havia identificado — com uma artística intuição intelectual — esta solução 'filosófico-poética' para questões transcendentais, a conciliação atemporal: a arte; ela é a conjunção do finito corporal com a tendência infinita da alma humana: o belo é o infinito exposto de forma finita, vivenciada, sentida. A resposta estava tão próxima, bastava deixar-se encantar pelo mundo, ou cantá-lo, como Raul fez, e, também Zaratustra.
Nietzsche nos mostra o filósofo bailarino Zaratustra a descer das alturas transcendentais, para viver o mundo do aqui-agora, ao rés da experiência na Terra, e com sua dança e seu martelo, com sua voz e com seu amor-fati, preparou e abriu terreno dos valores e fronteiras, por onde a linguagem e o pensamento unidos criassem novas travessias... e assim nos fala de sua eternidade, o poeta-filósofo!
E, se falando em poetar filosofias em jardins, nos vem logo à mente o poeta-filósofo Lucrécio, que, resgatado em uma recôndita biblioteca, escondido entre pergaminhos e cinzas vulcânicas, pelo caçador de livros e relíquias Poggio Bracciciolini, nos encantou com a poesia da Natureza das Coisas, vista pelos olhos de outro mestre dos jardins: Epicuro.
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Quando as mãos de Poggio alcançaram o pergaminho onde o poema de Lucrécio emanava a filosofia e a arte da vida de Epicuro, a mente de nosso caçador de livros viveu uma atemporalidade sublime e plena.
E é disto que se trata: o rasgo e o risco que a mente poética faz no tecido do tempo e do conhecimento, e por um instante estamos unidos, imanentes no sublime da existência; e o poeta canta, o filósofo se encanta; os dois alumbrados da felicidade plena da arte de sentir e compreender o mundo, simples e belo.
Este portal, aberto escancaradamente por Nietzsche; esta simbiose recalcada e discutida por séculos, pergaminhos e tintas, entre a poesia e a filosofia, foi enfim superado, e muitos filósofos e poetas seguem a ornamentar e florir estes jardins.
George Santayana, que muito estudou filosofia nos poetas dizia não haver outro meio de estudar-se o conhecimento e a experiência que é adquirida e elaborada por uma mente que é ‘poética’ do início ao fim, assim identificando a poética-filosófica do mundo com a espiritualidade — ‘a loucura normal’ — e a sensação da tendência a religiosidade — à ‘re-ligação’ — do homem ao mundo; o que Tolstói já havia anunciado quando se perguntava ‘O que é a arte?’
E esta religiosidade desce de suas alturas — como o fez Zaratustra e Raul — novamente para a mente, quando um filósofo-poeta como Agamben diz ser o sentimento poético a própria sensação ‘ateológica’ da mente em sentir-se plena em sua experiência do mundo, como narração de uma sensação de pura integralidade de sua linguagem com o mundo experienciado e vivido: a imanência mística do eu plenificado pela poesia do existir, o instante e o presente imortalizado, pronto para o eterno retorno: Sancho Pança e Quixote olhando para o mesmo sol, felizes.
Felizes, não é disso que se trata? Quando encontramos aquele verso final que nos arrebata?
Quando, indiferentes ao lado do vento que o conhecimento e a beleza nos apanha, nos pegamos a pensar em um fragmento do personagem de Fernanda Montenegro, que na peça ‘Dias Felizes’ de Beckett, veste sua Winnie com sua corporeidade, seus gestos, e as falas entrecortadas por suspiros, em máxima e extrema expressão poética; e, no tráfego de volta à casa, pelas ruas indiferentes e lotadas, junto à Winnie Montenegro ouvimos o Zaratustra Seixas a cantarolar, pelos jardins de um Lucrécio apaixonado: ‘...eu sou as coisas da vida... a força da imaginação... a cegueira da visão... – e nossa mente a se perguntar: é isso poesia ou filosofia? – mas o que me importa, se me conforta... o que me importa... se estou em um dia feliz!'.
*A. A. A. Fernandes publicou o livro Errantes do Pensamento – O Segredo de Poggio: Uma Rapsódia Filosófica. A Obra é a primeira de uma trilogia que pretende explorar os conflitos internos do protagonista Urbano junto de temas como necropolítica, ética na medicina e outras discussões filosóficas.


