Mindful Cooking: a prática que transforma a cozinha em um refúgio para a mente
Bons Fluidos

Existe um tipo de paz que não depende de silêncio absoluto. Às vezes, ela aparece no barulho da água fervendo, no clique do fogão acendendo, no perfume do alho recém-dourado. É nesse cenário aparentemente comum que nasce o conceito de Mindful Cooking, uma forma de cozinhar que não fala só de comida, mas de presença, saúde mental e reconexão com a própria vida.
Em vez de encarar o preparo das refeições como obrigação, pressa ou “mais uma tarefa do dia”, o Mindful Cooking convida a transformar esse momento em um pequeno ritual de cuidado. Conversei mais sobre isso com a nutricionista Adriana Kachani, professora do curso Terapia na Cozinha da Escola Le Cordon Bleu Brasil, que definiu assim: “É a prática de estar totalmente presente e focado durante o processo de cozinhar, transformando uma tarefa rotineira em um momento de calma e prazer”. Parece simples, e é. Mas, na prática, pode mudar profundamente a forma como nos relacionamos com a comida, com o corpo e com a própria mente.
O que é Mindful Cooking?
Imagine uma cena cotidiana. Você pega uma cenoura para picar. Em vez de pensar no e-mail que não respondeu ou na reunião de amanhã, você decide voltar a atenção para o que está nas suas mãos. Percebe o peso da cenoura, a textura firme, o laranja intenso. Escuta o som da faca tocando a tábua. Repara no ritmo dos cortes, quase como se fosse uma música.
Ao mexer uma sopa, em vez de se perder nas preocupações, você observa o movimento da colher, o vapor que sobe, o som suave do cozimento em fogo baixo, o aroma que vai tomando conta da cozinha. Isso é Mindful Cooking. Não é nada místico nem complicado. É apenas o gesto deliberado de estar ali de verdade.
Visão da especialista
Adriana Kachani enfatiza que, ao ficar atento à cor, ao aroma e à textura das preparações, todos os sentidos são convocados. O cozinheiro deixa de ser alguém que “executa tarefas na cozinha” para se tornar alguém que se conecta com o alimento. E, curiosamente, isso muda também a qualidade do que se coloca no prato. Segundo ela, quem pratica Mindful Cooking costuma fazer escolhas mais saudáveis quase naturalmente, porque passa a desejar ingredientes mais frescos, vivos e nutritivos.
Ela lembra ainda que tudo começa muito antes do fogão. O Mindful Cooking começa na escolha dos produtos, de preferência orgânicos, que respeitam não só a própria saúde, mas também a saúde do planeta. Ir a uma feira, escolher frutas maduras, cheirar ervas frescas, sentir diferentes texturas já faz parte da prática.
Como isso impacta a saúde mental
Do ponto de vista da nutricionista, atividades que envolvem foco em uma única tarefa, atenção aos sentidos e repetição suave de movimentos tendem a acalmar o sistema nervoso. Quando alguém está totalmente concentrado em uma experiência sensorial, o cérebro afasta, por alguns instantes, o bombardeio de estímulos que vem de telas, notificações e pensamentos acelerados.
Cozinhar com atenção plena pode funcionar quase como uma meditação em movimento. Não exige ficar parado, de olhos fechados, mas produz um efeito semelhante: a mente reduz a velocidade. Para muitas pessoas com ansiedade, estresse crônico ou sensação constante de sobrecarga, isso pode ser um primeiro passo para recuperar um pouco de espaço interno.
Adriana Kachani observa, na prática clínica, que o Mindful Cooking ajuda a diminuir a relação de culpa com a comida e a quebrar ciclos de comer no automático. Quando o preparo da refeição passa a ser vivido como algo importante, que merece tempo e respeito, diminui a tendência de “comer qualquer coisa” só para resolver um problema imediato de fome ou ansiedade.
Uma nova relação com a comida e com o próprio corpo
Muita gente cresceu vendo a cozinha como lugar de obrigação, especialmente mulheres que foram ensinadas a cozinhar para cuidar dos outros, mas quase nunca ensinadas a cozinhar para si mesmas. Outras pessoas, na correria da vida adulta, passaram a viver de aplicativo, delivery e lanches rápidos, quase sem perceber o que comem.
O Mindful Cooking propõe uma mudança de perspectiva. Cozinhar deixa de ser apenas o ato de “produzir comida” e passa a ser um modo de se relacionar com o próprio corpo. Entre as vantagens dessa prática, destacadas por Adriana Kachani, estão:
- Desenvolvimento de habilidades culinárias e criatividade;
- Mudança gradual de hábitos alimentares;
- Fortalecimento do vínculo entre quem cozinha e o alimento;
- Maior valorização da comida e do processo que existe antes do prato chegar à mesa;
- Redução de ansiedade e estresse;
- Exercício diário da autoaceitação e do não julgamento;
- Melhora da capacidade de foco.
Quando alguém escolhe ingredientes com calma, prepara uma refeição com presença e come com consciência, passa a perceber melhor sinais de fome e saciedade, aprende a diferenciar vontade emocional de comer e necessidade física de nutrir o corpo, e tende a fazer escolhas mais coerentes com o que realmente deseja. Não se trata de perfeição, muito menos de dieta. Trata-se de vínculo.
Como começar a praticar Mindful Cooking
Uma das grandes vantagens é que o Mindful Cooking não exige uma cozinha perfeita, utensílios sofisticados nem muito tempo. Ele pode começar com o que você já tem em casa, a partir de pequenos ajustes de postura. Adriana Kachani sugere alguns caminhos simples para iniciar:
- Estabeleça um horário para cozinhar com intenção;
- Vá a feiras e comércios orgânicos quando possível;
- Reduza distrações na cozinha;
- Convide seus sentidos para participar;
- Experimente novas receitas de vez em quando;
- Use seus melhores utensílios;
- Agradeça antes de comer;
- Quando a cozinha vira lugar de recuperação e não de cobrança.
É importante lembrar que o Mindful Cooking não é mais um motivo para se cobrar. Não é para criar a sensação de que a pessoa está errando quando não consegue estar presente o tempo todo. É justamente o contrário. É um convite gentil para que, dentro do possível, ao menos em alguns momentos da semana, se crie um espaço de respiro.
Nem sempre vai dar para cozinhar com toda a calma do mundo. Haverá dias em que será preciso recorrer ao que está pronto, ao prato rápido, ao sanduíche improvisado. Isso faz parte da vida real. O ponto é que, quando a prática vai sendo incorporada, a cozinha deixa de ser cenário de correria constante e passa a ser também um ponto de apoio emocional.
Benefícios
Adriana Kachani ressalta que, ao desfrutar do processo de cozinhar como forma de atenção plena, a pessoa não está apenas se alimentando melhor. Ela está se tratando com mais respeito. Em um mundo em que quase tudo exige rapidez, escolher fazer algo devagar e com cuidado é um gesto silencioso de rebeldia saudável.
O Mindful Cooking não transforma a vida de um dia para o outro. Mas, prato a prato, corte a corte, aroma a aroma, ele vai reconstruindo a relação com a comida, com o corpo e com o tempo. E muitas vezes é na simplicidade de uma panela em fogo baixo que a mente encontra o que mais precisa: um pouco de presença, um pouco de paz e a sensação de que, apesar de tudo, ainda é possível voltar para casa dentro de si mesmo.
Sobre a autora
Jéssica Martani é médica psiquiatra, especialista em TDAH, saúde mental e regulação emocional. Coordena a pós-graduação em TDAH do Instituto TDAH, reconhecida pelo MEC, em parceria com a Universidade Anhanguera. É colunista da Bons Fluidos (Editora Caras) e criadora do canal Brilhantemente, onde traduz temas complexos e reflexões acessíveis para quem busca equilíbrio emocional e transformação pessoal. Saiba mais em Instagram e YouTube.
