A importância do testemunho dos sobreviventes do Holocausto
Aventuras Na História

Entre 1941 e 1945, o regime nazista implementou a tentativa sistemática de extermínio do povo judeu e de outras minorias perseguidas, em um processo que resultou na morte de cerca de seis milhões de judeus e milhões de outras vítimas.
Frente à brutalidade e à escala dessa catástrofe, os testemunhos dos sobreviventes emergiram como uma das principais formas de resistência ao esquecimento e de afirmação da memória histórica.
Os relatos
Mais do que relatos individuais, os testemunhos do Holocausto ajudam a dar um rosto e uma voz ao sofrimento de milhões de pessoas. Eles humanizam as estatísticas, transformando números em histórias concretas de vida, perda e resistência. Como destaca Primo Levi (1990), os que retornaram carregam a difícil missão de falar também por aqueles que não puderam narrar sua própria experiência.
Essa responsabilidade, conhecida entre estudiosos como “testemunho por delegação”, confere aos relatos uma dimensão coletiva e ética. Segundo Seligmann-Silva (2008), o testemunho carrega, ao mesmo tempo, a urgência de dizer e a consciência de sua impossibilidade, pois o trauma que o funda excede as capacidades da linguagem. Narrar o trauma é sempre uma tentativa de simbolizar o que se apresenta como inenarrável, marcada por lacunas, silêncios e fragmentações.
Nesse sentido, Seligmann-Silva (2008) argumenta que o testemunho se constrói na tensão entre a urgência de dizer e a consciência de sua impossibilidade, já que o trauma que o constitui excede os limites da linguagem.
Narrar o trauma é, portanto, uma tentativa de simbolizar o que se apresenta como inenarrável, sempre atravessada por lacunas, silêncios, hesitações e fragmentações. A linguagem, diante do horror absoluto, torna-se insuficiente, e, no entanto, continua sendo o único instrumento disponível para aqueles que buscam dar forma ao indizível e resistir ao apagamento da experiência.
Testemunhar, por isso, nunca foi um processo simples. O peso do trauma, o medo de não ser ouvido ou compreendido e a dor inevitável de reviver o horror acompanharam muitos sobreviventes ao longo de suas vidas.
Como apontam Pollak e Seligmann-Silva (2008), durante décadas, o silêncio foi a escolha de muitos que não encontravam meios subjetivos, sociais ou culturais para contar o indizível.
O trauma, nesse caso, não apenas rompe a continuidade da vida, mas desafia as estruturas narrativas que tentam restabelecer sentido após a catástrofe. Foi apenas a partir das décadas de 1970 e 1980 que os testemunhos passaram a ganhar maior reconhecimento e legitimidade, tanto na historiografia quanto na literatura, nas artes e nos debates públicos.
Esse deslocamento está relacionado ao surgimento de uma nova sensibilidade histórica e cultural, mais receptiva às vozes subalternizadas e aos discursos da memória.
O reconhecimento da importância do relato
Olmi (2015) ressalta que, num primeiro momento, esses testemunhos circularam de forma restrita, quase clandestina, direcionados a leitores próximos e marcados pela indiferença do público e pela urgência do pós-guerra em “virar a página”.
Em um contexto marcado pela reconstrução material da Europa e pela Guerra Fria, muitas vezes faltou espaço para escutar o sofrimento dos sobreviventes. Com o tempo, contudo, a literatura do Lager — termo que remete aos campos de concentração e extermínio — passou a ser reconhecida como instrumento imprescindível para a elaboração histórica, ética e crítica do passado, tornando-se parte essencial do patrimônio memorial da humanidade.
Esse reconhecimento crescente, porém, não veio sem dilemas. O avanço da chamada “indústria da memória”, como analisado por Kurtz (2010), especialmente no contexto de iniciativas como o projeto Survivors of the Shoah Visual History Foundation, fundado por Steven Spielberg, trouxe à tona novas tensões e contradições.
A espetacularização de certas formas de narrar o Holocausto, o risco de transformar o testemunho em mercadoria cultural e a consequente reificação do sofrimento geram inquietações legítimas sobre a maneira como a sociedade contemporânea consome, distribui e ressignifica essas memórias.
Há, como alerta Olmi (2015), o perigo de que o testemunho perca sua força ética e crítica ao ser absorvido por circuitos de consumo e entretenimento que diluem seu sentido histórico e o esvaziam de sua potência transformadora.
Apesar dessas tensões, os testemunhos permanecem como uma das ferramentas mais potentes contra o negacionismo e a distorção dos fatos. Para além de seu valor documental, eles desempenham uma função pedagógica essencial: mostram às novas gerações que o Holocausto não foi um acidente da história ou uma fatalidade natural, mas o resultado de decisões humanas, políticas e institucionais, tomadas em nome de ideologias totalitárias e excludentes.
Como adverte Levi (1990), o verdadeiro risco está em acreditar que “tudo aquilo pertence a um passado remoto e irrepetível”, quando, na verdade, os sinais do ódio, da discriminação e da violência continuam presentes e atuantes no mundo contemporâneo. A memória, nesse contexto, deve ser compreendida não como um refúgio nostálgico, mas como um alerta permanente.
Hoje, vivemos os últimos anos em que ainda é possível ouvir relatos em primeira pessoa. Por isso, cada depoimento — seja em livros, vídeos, podcasts ou outras mídias — deve ser não apenas preservado, mas analisado e, sobretudo, transmitido.
Como demonstram Felix e Salvadori (2015), mesmo os corpos fragilizados dos sobreviventes, e os próprios corpos de suas narrativas, resistem à morte simbólica imposta pelos campos. Os testemunhos buscam não apenas atestar o horror, mas convocar a escuta, e com ela, o compromisso.
A memória dos sobreviventes é um chamado à responsabilidade coletiva. Ouvi-los é mais do que um gesto de empatia: é um compromisso ético com a verdade, com a justiça histórica e com a dignidade humana.
Referências bibliográficas:
FELIX, José Carlos; SALVADORI, Juliana Cristina. A mortificação do corpo em É isto um homem? de Primo Levi. Ilha do Desterro, Florianópolis, v. 68, n. 3, p. 43–53, set./dez. 2015.
OLMI, Alba. Memória do Holocausto: uma categoria literária do testemunho. Signo, Santa Cruz do Sul, v. 40, n. 68, p. 42–54, jan./jun. 2015.
KURTZ, Adriana Schryver. How to consume Holocaust testimonies with aesthetic pleasure: a critical evaluation of the Survivors of the Shoah Foundation. E-Compós, Brasília, v. 13, n. 2, 2010.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra. 2016.
PAIXÃO, Cristiano; FRISSO, Giovanna Maria. Usos da memória: as experiências do Holocausto e da ditadura no Brasil. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 97, p. 191–212, jan./abr. 2016.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65–82, 2008.