Descolonização do pensamento brasileiro: Como o Brasil Império reflete nos dias atuais

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Nas últimas semanas, temos sido bombardeados por estudos e opiniões que alardeiam o terrível impacto do fim da escala 6×1 sobre a economia. Ao que parece, embora nas últimas décadas tenhamos tido ganhos de produtividade jamais vistos, reduzir a jornada de trabalho quebraria a economia, dizem os multimilionários.
A velha engrenagem do poder faz barulho nos bastidores desde que a proposta foi apresentada pela deputada Erika Hilton e, no meio de uma fabricada guerra cultural que já dura décadas, devolveu às galerias da Câmara um certo clima de luta de classes.
Esse é um debate novo? Nem tanto. Basta escavar um pouco para descobrir nesse debate raízes que atravessam cinco séculos de colonialismo. A independência política de 1822, a abolição tardia de 1888 e a proclamação da República no ano seguinte não romperam o cordão umbilical que une as elites brasileiras ao centro nervoso colonial, tampouco às práticas colonizadoras, que enxergam os corpos de trabalhadores como extensão da terra a ser dominada e explorada.
Passado e presente
Essas elites continuam a atuar como correias de transmissão de interesses externos, do ouro português ao capital especulativo norte‑americano. Daí a alergia crônica a qualquer redistribuição de poder, fosse o fim da escravidão no século 19 ou a simples ideia de trabalhar cinco dias por semana no século 21.
Cada soluço autoritário da história brasileira, do golpe de 1964 ao impeachment de 2016, representa em certa medida o inconformismo que nossas elites coloniais nutrem desde 1888. Afinal, a abolição foi vista como perda patrimonial, e não foram poucas as opiniões que expressavam a mesma "preocupação" com a economia brasileira. O padrão se repete: quando direitos sociais ameaçam lucros, surgem soluções de força.
Esse domínio não se exerce apenas na esfera política, claro. O padrão do homem-branco-hétero-rico segue como medida de todas as coisas, no protagonismo do audiovisual, nas fotos de formatura e no topo das pirâmides financeira e jurídica.
O país de maioria negra guarda a cartilha estética do antigo senhor de engenho, que afasta e condena. Quando uma proposta de reduzir a jornada de trabalho é recebida como ameaça ao PIB, vale lembrar esse peso que carregamos, o de uma colônia concebida na lógica de extração, jamais de inclusão.
O ônibus lotado que cruza periferias antes do amanhecer, seis dias por semana, tem linha direta com as sesmarias que se perdiam no horizonte, mantidas nas mesmas mãos desde o século 17. Por isso, aceitamos com tanta naturalidade um economista aparecer na TV reduzindo vidas a porcentagem de lucro. É o chicote do nosso tempo calando a voz do trabalhador.
Uma compreensão decolonial da realidade pode nos livrar do açoite. A decolonialidade desloca as identidades hegemônicas do centro para contar o Brasil também pela perspectiva indígena, negra e diaspórica, como protagonistas de suas próprias narrativas em vez de figurantes exóticos.
Essa voz que ecoa há tempos um grito de luta nos faz enxergar a verdadeira batalha que temos pela frente. É o que tenho tentado evidenciar em meus últimos romances, 'Trama Ancestral' (Cortez, 2024) e 'Fios de Ferro e Sal' (Cortez, 2025), protagonizados por personagens negros e indígenas e suas culturas.
Apesar de serem narrativas ficcionais com elementos fantásticos, são fortemente ancoradas em pesquisa historiográfica, com formas de se resolver e lidar com os conflitos diferentes daquelas construídas pelo olhar ocidental, ou seja, europeu e estadunidense.
Aposto na ficção como laboratório de empatia: por alguns capítulos, o leitor enxerga o mundo pelos olhos de quem foi historicamente silenciado. Assim, podemos produzir um imaginário compartilhado em que a cultura e arte possam descentralizar o olhar, recontando a história com múltiplos protagonistas e nos ajudando a ver a perpetuação de injustiças que muitos de nós acreditamos superadas, mas não foram. Não foram mesmo.
Essa tarefa de multiplicar espelhos até que cada brasileiro se reconheça na paisagem abre os nossos olhos para a política concreta, para o necessário apoio à mobilização popular que força o Estado a redesenhar jornadas, taxar fortunas e proteger direitos.
Nas próximas semanas, quando os mesmos arautos do colapso voltarem às manchetes, precisamos nos reconhecer na posição que sempre estivemos nessa colônia chamada Brasil e gritar mais alto que os colonizadores.
*Wilson Júnior é historiador, escritor e professor de escrita criativa, autor de 999 (Escambau, 2022), Trama Ancestral (Cortez, 2024) e Fios de Ferro e Sal (Cortez, 2025).


