Os livros que contém anotações de monges que viveram há mais de mil anos

Aventuras Na História






No início da Idade Média, monges irlandeses realizaram um feito que mudaria o destino cultural da Europa: transportaram uma valiosa coleção de manuscritos para o continente, numa tentativa de preservar o conhecimento diante da ameaça iminente dos ataques vikings.
Esses textos, escritos entre os séculos 6 e 9 — durante a chamada "era de ouro da Irlanda" — incluíam escrituras religiosas, compilações enciclopédicas e manuais linguísticos.
Agora, pela primeira vez em mil anos, alguns desses manuscritos retornam ao seu país de origem. Eles estão sendo exibidos em Dublin, no Museu Nacional da Irlanda, na mostra "Palavras na onda: Irlanda e St. Gallen na Europa medieval primitiva". A exposição reúne 17 manuscritos irlandeses históricos, emprestados pela Abadia de St. Gall, na Suíça — um dos locais para os quais os monges migraram séculos atrás.
Além dos textos, a mostra também exibe artefatos medievais raros, como o santuário de livro conhecido como Santuário de Lough Kinale, resgatado do fundo de um lago em 1986.
A exposição
Segundo o curador Matthew Seaver, a exposição busca reconstruir os caminhos percorridos pelos monges e o universo cultural em que esses livros foram produzidos. "Esses livros são fundamentais para a compreensão de nós mesmos, nossa língua e nossos vínculos com o continente, afirmou ele ao jornal The Guardian.
Segundo a revista Smithsonian, entre os destaques da mostra está o exemplar mais antigo conhecido da obra Etymologiae, uma enciclopédia sobre a origem das palavras escrita no século 7 por um escriba irlandês. O museu descreve a obra como "uma verdadeira internet do mundo antigo", tamanha sua abrangência e importância para o pensamento medieval.
Intercâmbio intelectual
Como destaca a fonte, esses livros serviram como instrumentos de intercâmbio intelectual. A Irlanda, desde cedo, recebeu livros e estudiosos vindos da Europa continental e da Inglaterra anglo-saxônica, criando uma rede de trocas culturais que moldou o pensamento europeu nos séculos seguintes.
Mas o valor desses manuscritos vai além do conteúdo formal. Muitos trazem anotações feitas pelos próprios monges copistas, revelando aspectos curiosos de sua vida cotidiana. Em um manual de gramática latina, por exemplo, há desabafos sobre o frio, reclamações sobre a qualidade da tinta e até uma nota espirituosa de um escriba dizendo que estava "morto por cerveja", uma expressão que fazia referência à ressaca.
Outros textos expressam temores reais: em um deles, um monge escreve poeticamente sobre o vento da noite e torce para que os vikings não ataquem, chamando-os de "os ferozes heróis de Lothlend".
"Esses livros estão cheios de vozes humanas, humor, frustração e resiliência, oferecendo-nos um vislumbre raro e muito real da vida cotidiana e das personalidades dos primeiros monges irlandeses medievais", resume Seaver.

Objeto sagrado
Outro tesouro da exposição é o Santuário do Livro de Lough Kinale, um objeto sagrado feito para abrigar textos religiosos associados a santos. Apenas oito desses santuários da Irlanda medieval são conhecidos hoje, o que torna essa peça especialmente valiosa. Descoberto no fundo de um lago há quase quatro décadas, ele passou por 39 anos de conservação minuciosa antes de poder ser exibido ao público.
Segundo Paul Mullarkey, conservador do museu, o santuário permaneceu completamente lacrado por séculos, sem modificações — um achado raro.
"Sua importância reside no fato de termos um santuário que não passou por modificações ou reparos e podemos ver o que os outros santuários de livros perderam", explicou.
Do tamanho de uma lista telefônica, a peça é feita de carvalho e placas de bronze, adornada com uma cruz em relevo, tachas, medalhões e padrões gravados. Vale destacar que, no passado, suas dobradiças em forma de cabeça de serpente seguraram uma tira de couro grossa.
De acordo com a revista, após emergir do lago em pedaços, o santuário foi mantido em um tanque de água por seis meses antes que os trabalhos de conservação começassem. "Há uma sensação de satisfação e alívio por o santuário estar agora disponível para o público ver e apreciar", disse Mullarkey ao Irish Times.


